segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

PERDA SEM NOME


PERDA SEM NOME

“Entre todas as dores que infelicitam a condição humana, uma
delas se sobressai como a mais terrível, a mais injusta, a mais
profunda: a dor da perda de um filho. Se a morte já é inaceitável,
se a tememos e a desprezamos, a morte de um jovem, rompendo
o ciclo natural, interrompendo uma trajetória que todos supunham
venturosa, expõe-nos de maneira brutal a efemeridade da
existência.
Diante dessa perda, alguns sucumbem fisicamente. Outros afastam-
se da racionalidade, mergulhando em um mundo de sombras.
E outros, por fim, retirando forças sabe-se lá de que fonte
de energia, resistem, enfrentam, olham para frente, sem esquecer
o passado, é verdade, mas procurando manter a integridade
psicológica até como homenagem aos que partiram”.

Sergius Gonzaga.
Fragmento retirado do livro Thiago Gonzaga-Histórias de uma
vida urgente.



Se a vida se inscreve com um linear lógico de acontecimentos onde o nascer, crescer,
reproduzir e morrer são etapas sequenciais de uma ordem e esperadas, a inversão deste
seguimento por uma morte nos desafia e nos deixa sem palavras para nomeá-la.
A gramática classifica como “viúvo” ou “viúva” aquele que perde seu cônjuge, nomeia como
“órfão” aquele que perde seus pais, mas não designa uma palavra para a inversão da ordem que
classificaria os pais que perdem seus filhos.

“Não há um nome para esta perda, deveria ser proibido que os
filhos partissem antes dos pais, é contra a ordem natural da vida,
se existisse uma palavra para isso certamente, seria um palavrão”.

Sabemos que o enorme sofrimento que esta situação acarreta causa a falta de nomeação. Mas
entendemos também que este é um tema tabu, ninguém quer pensar que isto possa acontecer
consigo, se aproxima do proibido, do sagrado.

“Um dia li numa revista o depoimento angustiado de um pai que
perdera seu filho estupidamente num acidente de automóvel.
A exemplo de outros milhares de pais brasileiros me comovi

com aquele desabafo sem poder imaginar que também eu
experimentaria a dor exasperante da morte de um filho em
circunstancias parecidas”.

Régis Gonzaga - Pai de Thiago Gonzaga
Fragmento retirado do livro Thiago Gonzaga-Histórias de uma
vida urgente.


A realidade que se instala com a perda é impensável e inominável. Parece se ligar com a parte
mágica convocatória que as palavras têm, significando que se não é nomeado evita-se que
ocorra o que se teme. Da mesma forma as pessoas pensam que se não falarem da pessoa que
morreu podem apagar o que aconteceu.
A falta de uma pessoa amada não pode ser ignorada, esquecida ou deixada de lado, precisa ser
reposicionada. Esta reposição implica em não negar o acontecido, em poder falar da pessoa
falecida sem restrições, sem chocar ninguém e de realizar o luto dentro de um tempo adequado
para si mesmo. Quando as pessoas evitam falar em quem partiu reafirmam a posição de que este
precisa ser realmente esquecido. Diferente de qualquer outro luto que segue a sequência lógica
da vida, a morte de um filho reafirma a incondicionalidade do amor e portanto a impossibilidade
do esquecimento:

“Filho não morre, ele segue vivo na nossa lembrança, nos nossos
sentimentos e em tudo o que fazemos. É como se fosse o pano de
fundo das nossas emoções”.

“É estranho, já se passaram dois anos, e ele ainda está tão vivo
dentro de mim”.

“Faz 31 anos que ele partiu, mas para mim foi hoje pela manhã
às 08 horas quando recebi a ligação e me avisaram do acidente”.

Se para a maioria dos tipos de luto o tempo entre o acontecido e o hoje serve para acomodar os
fatos e nos distanciar saudavelmente da situação, o luto de pais nos ensina uma forma diferente
de vermos que, o fato em si, não se acomoda.
A realidade externa imposta pela perda do filho suscita um comportamento que não condiz
com a realidade interna (psíquica) dos pais. Quando não respondem de maneira adequada às
exigências sociais de esquecimento, embotamento ou “superação” (não falar do filho, não ter o
tempo adequado para dar um destino aos objetos pessoais deles, ter que continuar a vida e as
obrigações sociais como se nada tivesse acontecido, etc.), sentem-se diferentes, constrangidos
e excluídos no seu cotidiano.

“É como se a minha má sorte fosse contaminar a todos, as pessoas
evitavam falar comigo”.


“Quando chego em algum lugar, as pessoas me olham como se
eu fosse um ET, e às vezes é assim que me sinto, pois tudo está
sendo reavaliado na minha vida”.

“É como se eu tivesse perdido minha identidade, as pessoas me
olham como ‘aquela que perdeu o filho’”.

Nosso inconsciente não reconhece esta perda. Por mais que teoricamente saibamos que isto
acontece, não há representação dentro de nós, há teorias; mas nosso mecanismo de preservação
da vida nos faz acreditar que estaremos no registro geral, portanto não registra a inversão
da ordem da vida. Com a brutalidade inesperada da morte, ocorre uma ruptura, um trauma
em nossa mente, e muitos sentimentos intoleráveis vem à tona. Ficando as perguntas: Como
é possível tornar verdade algo que não queremos acreditar e que nos invade com tamanha
violência? Como lidar com isso? Diza Gonzaga, mãe de Thiago de Moraes Gonzaga e criadora da
Fundação que leva o nome do seu filho, nos ajuda a construir algumas possibilidades:

“A morte não nos dá alternativas a não ser lidar com a vida que
fica dentro de nós. Os pais participantes dos Grupos de Apoio da
Fundação Thiago de Moraes Gonzaga, generosamente criam, recriam
e compartilham formas de lidar com aquilo que é irreversível.
Se chorar trouxesse nossos filhos de volta certamente estaríamos
reunidos para fazer o grupo do choro, mas como não há
possibilidade disto acontecer, nos reunimos para em nome dos
nossos filhos proclamar a vida. Queremos através deste trabalho
dizer a sociedade que se tivesse um nome adequado para classificar
os pais que perdem seus filhos, este nome seria: SOBREVIVENTES.
E a qualidade desta sobrevivência vai depender de cada
um de nós e do quanto vamos nos abrir para aprender a viver dignamente
todos os dias sem a presença física dos nossos filhos”.

Não há um final previsível para o luto dos pais por seus filhos, há o investimento e o
reposicionamento do amor de forma que os sentimentos envolvidos nesta situação não precisam
ser ignorados ou evitados e nem carreguem consigo o peso aterrorizador da morte.


O texto acima pertence a um guia elaborado através de depoimentos de pais que perderam filhos e profissionais da área de psicologia da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga com a OMS, Publicação " Perdas sem nome".

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